Democracia e poder
Uma relação difícil
Estudo aponta aumento do desconhecimento sobre o sistema
democrático
ED. 235 | SETEMBRO 2015
© DANIEL KONDO
Nas
últimas eleições, em 26 de outubro de 2014, mais de 100 milhões de brasileiros
foram às urnas para escolher seus representantes. Dias depois, uma equipe de pesquisadores
de várias universidades saiu a campo para investigar a relação dos eleitores
com o sistema político representativo. Vinculado a um convênio internacional
com a Universidade de Michigan, nos Estados Unidos, o estudo, como ocorre desde
2002, foi realizado num momento em que os resultados das eleições já estavam
definidos. “Queremos analisar o quanto a democracia é um sistema compreendido como
um regime que satisfaz ao cidadão”, diz a cientista política Rachel Meneguello,
professora do Departamento de Ciência Política e pesquisadora do Centro de Estudos
de Opinião Pública (Cesop) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp),
coordenadora da pesquisa.
Um
dos principais eixos do projeto é o Estudo Eleitoral Brasileiro (Eseb), um surveynacional
com 3.136 entrevistas realizadas entre 1o e 18 de novembro de
2014, que abordou questões como adesão à e definições de democracia, memória do
voto, preferência partidária e representação política. Em 2002, época da eleição
do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para seu primeiro mandato, cerca
de 59,1% dos brasileiros preferiam a democracia como sistema político, 15,6%
admitiam a possibilidade de uma ditadura, 15,2% responderam “tanto faz” e 9,9%
não souberam responder. Em 2010, na transição entre Lula e Dilma Rousseff, a
adesão à democracia saltou para 78,5%, diante 8,7% que não se opunham à volta
de um regime autoritário. Em 2014, porém, a preferência pela democracia caiu
para 65,2%.
“É preciso comparar com outros dados da pesquisa”,
comenta Rachel Meneguello. “A parcela que considera a ditadura preferível à democracia
em algumas situações aumentou [de 8,7% para 10,5%], mas ainda é baixa. No entanto,
a porcentagem dos que não sabem definir o regime democrático cresceu significativamente,
de 25,1% em 2010 para 47,8% em 2014.” Esse dado, mais o fato de que menos da
metade dos entrevistados (40,7%) se diz satisfeita com o funcionamento da
democracia, revela a existência de um descontentamento com o regime do modo
como está sendo exercido no país. “Preferir a democracia não significa estar
contente com ela”, aponta Rachel.
“Além
disso, recebemos respostas diferentes sobre as definições de democracia”, diz
Valeriano Mendes Ferreira Costa, da Unicamp, um dos integrantes da equipe de
pesquisadores. “Teria a ver com direitos e deveres? Com justiça? Com
liberdades? É um momento de redução de crença na democracia, o que é compreensível
pela conjuntura, polarização política, menor identificação com os partidos –
incluindo o PT –, o desgaste e a crise econômica. Há uma série de oscilações a
considerar, mas não há uma curva contínua de queda na adesão à democracia”,
acrescenta Ferreira Costa.
Ao
contrário, até 2010 essa adesão vinha subindo regularmente. A queda só se verifica
entre 2010 e 2014. Na interpretação dos cientistas políticos, essa quebra de tendência
revela um paradoxo, que é o ponto principal a ser estudado a partir de agora.
Ou seja, após um período em que as políticas de inclusão, ampliação dos
direitos e redução da desigualdade têm ampla difusão como elementos básicos da
construção democrática do país, os referenciais associados ao aprofundamento da
democracia perderam peso, aumentando a parcela da população que não sabe
definir o fenômeno.
A pesquisadora observa que a percepção da democracia
traz oscilações relacionadas com a principal bandeira dos governos da vez. Nos
mandatos de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), um dos itens mais reconhecidos
entre os valores associados à democratização do país era a estabilidade
econômica ao lado das eleições diretas. Nos governos petistas, a predominância
passou a ser das políticas sociais. Esta última tendência não mudou entre os
eleitores ouvidos pela pesquisa de 2014, mas mesmo assim apareceram nos
resultados menor adesão à forma de governo vigente e queda no entendimento do
que é democracia. “Se analisarmos o salto de 2002 para 2010 [a adesão à
democracia passou então de 59,1% para 78,5%], é preciso lembrar que estávamos
num terreno de conquista de direitos e inclusão socioeconômica. E os dados de
2014 sugerem que se perderam no período as referências que constituíam a noção
de democracia para a população”, diz Rachel.
A
cientista política é cautelosa em relacionar o resultado da pesquisa com os
protestos e a crise política de 2015. “Não é possível analisar os dados de 2014
à luz do que aconteceu depois. Mas o descontentamento já estava indicado na
pesquisa”, afirma. Para a pesquisadora, um sinal eloquente é a queda pela
metade, entre 2010 e 2014, da porcentagem de entrevistados que se consideravam
representados por um partido (57,9% e 26,4%, respectivamente).
Desconfiança
Um dos principais focos da pesquisa é o estudo da capacidade representativa do
sistema eleitoral. “No Brasil, temos uma tradição presidencialista. O eleitor
lembra em quem votou para o Executivo, mas, com muita frequência, esquece o
candidato escolhido para o Legislativo pouco tempo depois das eleições”,
prossegue a pesquisadora. Os dados da pesquisa, segundo ela, indicam
desconfiança em relação ao próprio funcionamento das instituições
representativas: em 2010, 25,6% dos cidadãos tinham uma avaliação positiva do
Congresso; em 2014, a cifra caiu para 16,8%. “Isso quer dizer que a relação
entre o cidadão e o sistema político está ruim”, avalia. Não há, no entanto,
uma crise importante em relação ao valor da participação e da escolha eleitoral:
em 2014, 79,1% acreditavam que seu voto tem poder de mudança. Em 2010, eram
71%.
Além
das análises proporcionadas pelos dados colhidos no Eseb, há outras linhas de
pesquisa que compõem o projeto e congregam cientistas políticos de diversas universidades.
Da Unicamp há Rachel, Ferreira e Oswaldo Estanislau do Amaral; da Universidade
Estadual Paulista (Unesp), Maria Teresa Miceli Kerbauy; da Federal de São
Carlos (UFSCar), Pedro Floriano Ribeiro e Maria do Socorro Sousa Braga; e da
Universidade de São Paulo (USP), Bruno Wilhelm Speck.
Um
segundo eixo do projeto se dedicou a um estudo inédito no Brasil a respeito do
funcionamento interno das organizações políticas, avaliando o papel da
militância e dos filiados partidários no estado de São Paulo, território onde
os 32 partidos ativos do país marcam presença. Foram entrevistados 445
eleitores, filiados aos 10 maiores partidos de São Paulo. Um dos indicadores do
estudo revelou a atividade vigorosa dos militantes: 92,1% dos filiados do PT
participaram de um evento partidário, no mínimo, em 2013 – uma tendência alta
acompanhada por PSDB (90,2%), PSB (82,8%) e PDT (82,4%), entre outros.
Diversas
teorias tentam explicar o comportamento eleitoral mundo afora. Uma delas
defende que a economia é o fator determinante para as disputas eleitorais. No
projeto liderado pela Unicamp, os pesquisadores consideram outras variáveis
contextuais, como as estruturas socioeconômicas, abrindo-se para abordagens que
reconhecem o impacto de diferentes níveis da realidade social sobre o comportamento
político dos indivíduos, sem esquecer o peso da economia e o papel das
instituições.
“No
geral, a economia é um fator importantíssimo para o comportamento eleitoral,
mas sozinha não é capaz de explicar as diferentes escolhas dos eleitores”, diz
Bruno Bolognesi, pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Sociologia Política
Brasileira da Universidade Federal do Paraná (Nusp/UFPR) e do Núcleo de Estudos
dos Partidos Políticos Latino-americanos (Nepla/UFSCar). “É preciso investigar
diversos fatores.” Rachel alerta para outra questão: “Nós estamos trabalhando
com dados individuais, com as percepções das pessoas. Se os eleitores percebem
que a economia vai bem, votam no governante X. Se vai mal, pensam: ‘Vou perder
meu emprego, não tenho expectativa econômica’, e votam no candidato Y. Mas não
é só isso. As pessoas têm ideologias, crenças e valores políticos.”
Segundo
Valeriano Ferreira Costa, o momento de polarização política das eleições consolidou
ainda mais essa observação. “A economia importa, mas a identificação ideológica
e partidária também. Em 2014, por exemplo, por que tantas pessoas votaram em
Aécio Neves [que recebeu 48,35% dos votos], se a economia, na época, estava
aparentemente bem com Dilma? Em 2006, diante do escândalo do mensalão, por que
tantas pessoas reelegeram Lula?”, pergunta o pesquisador. “O voto, afinal, expressa
a opinião do eleitor. Por muito tempo, na década de 1970, os estudos democráticos
focaram apenas indicadores socioeconômicos. O que explica muito, mas não
explica tudo. No fim, nossos estudos de opinião pública destacam essa dimensão:
a opinião importa.”
Projeto
Organização e funcionamento da política representativa no estado de São Paulo (1994-2014) (nº 2012/19330-8); Modalidade Projeto temático; Pesquisadora responsável Rachel Meneguello (Cesop-Unicamp); Investimento R$ 854.931,60.
Organização e funcionamento da política representativa no estado de São Paulo (1994-2014) (nº 2012/19330-8); Modalidade Projeto temático; Pesquisadora responsável Rachel Meneguello (Cesop-Unicamp); Investimento R$ 854.931,60.
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